quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Graças de Graça e Homero

 


Dona Graça mora no quarto andar há aaaaaanos. Tem o prazer de dizer que é a primeira habitante local. Eu tenho o prazer de ver sempre seu sorriso. Aos oitenta e quatro anos e muita saúde, com frequência esquece de sair mascarada. Em tempos de tantos disfarces - autorizados e obrigatórios por lei - esse, digamos, deslize, dá-me grande privilégio. 

Seu Homero, habitante também do prédio, devidamente paramentado, brinda-me com olhares alegres, gentilezas verbais de cavalheiro, daqueles de antigamente. Agora não podendo mais beijar-me a mão, carinhosamente me chama de princesa. Do alto dos mesmos e diferentes oitenta e quatro, e muita saúde, colore, como sua companheira, minhas passagens pelo hall e elevador.

Dona Graça é mignon, magrinha, sem massa muscular. Aparentemente frágil, mostra força de dentro no rosto de poucas rugas e principalmente nas palavras sempre muito positivas. Religião ? Espírita praticante.

Seu Homero, por sua vez, católico assumido, assistidor de missa dominical, muito parecido em ânimo, diverge nas formas avolumadas, corpo de homem alto, nunca magro, que alargou. 

Ambos são grandes em suas incomparáveis medidas. Tento sugar algumas gotas sábias suas nos rápidos encontros não marcados, de saídas e entradas, cada vez menos frequentes. 

São gente que ensina sem dar lição, pela face que fala, voz em tons sem superioridade, desenvoltura do andar no tratamento com vizinhos. Ambos se movimentam bastante bem em moldes de corpo que nem de longe se comparam e parecem mostrar que não há receita para tal em termos de bem-estar. Demonstram estar confortáveis em suas carnes, na melhor medida possível para as datas das certidões de nascimento.

Enquanto com eles, entre as exclamações que experimento, marcantes e sutis, invariavelmente vêm as de cobiça - aquela inveja doce de ansiar igual. Quero ! Como ? Acordo sempre mais perguntas depois de deixá-los. Como ? Quero ! Que mistério esse de estar aqui, único, sem posologia ! 

Fórmula, segredo ? Desvendá-lo dia a dia.