quarta-feira, 13 de agosto de 2014
Versão líquida da liberdade
Agora passeia mansa à calçada. Desce a rua, aparece à janela, põe-se à porta... irreconhecivelmente calma, totalmente insuspeita da algazarra da noite.
Agora desfila elegante, flanando, faceira... convidando a acompanhar. Versa vestida em tons amenos, petits pois... alheia ao espetáculo encenado à madrugada.
Agora mana murmurando... tendo abeirado aos berros, bradando, batendo, esmurrando tudo, às trovoadas. Praticamente sussurra, depois de tanto pranto... acordando a casa, despertando vizinhos, sobreavisando hordas, em suspense: pondo povo de pé.
Agora acena... tendo forçado entrada, flagelando paredes, chicoteando chão, chacoalhando vidros, açoitando tudo. Veio... inflamada, nada amistosa, anunciando verão... em versão de alvorecer.
Agora assobia, dissimulada. Manhosa, sorrateira, achega-se de novo... disfarçando a zanga com que zoou antes, a fúria com que irrompeu à noite, vociferando... interrompendo sono, assaltando camas, cessando sossego.
Agora, sem balburdia, estende-se, avança. Vai, volta, passa... deflorando a aurora, decorando a manhã, estampando em vidraças as virgens horas de outro dia. Como se nada soubesse do passado recente, segue... feito entidade alienada, ignorante aparente.
Agora, delicada, deita, insinua-se com charme, pedindo acolhida, oferecendo-se a contemplação e desfrute. Qual sereia, canta com encanto. Ah, sabe arrebatar, sabe fazer-se ouvir !...
A que assomou-se à noite esteve exasperada, era colérica, estava possuída, incorporando o furor dos temporais. Surgiu violenta, desesperada, de repente. Impetuosa, sem ceder a trancas, avançava afoita... desferindo golpes ao vento. Surgiu em acessos de ardor incontrolável, aos rompantes, espancando o palpável sem piedade.
A que agora corre aconchega, acalenta, cultiva, aviva. Dança em baile de crescimento, de alimento, de frescor. Inspira, comove, move existência. Não, não é a mesma, e são tantas: um ente de múltiplas personalidades.
Ela é água, informa a química. Chama-se chuva. Verte aspergindo, moderada... ou, com potência, em tempestade. É poesia transparente, versos divinos, versão líquida da liberdade.