Longe de mim ousar parafrasear Dostoiévski, mas impossível não dispor desse título quando o tema é cozinha. Comer, que grande prazer !... Mas cozinhar é a morte pra mim ! Posso atravessar manhã e tarde todas entre quatro paredes, encelada, sozinha e acompanhada... de livros, namorando textos... e estou ótima ! Posso passar o dia em consulta ou de pé, em cirurgia e, na boa, estou inteira. Posso percorrer o dia escrevendo, flertando olho no olho com a tela, tocando teclado, pilotando caneta... e tudo BEM ! Posso botar o pé na estrada por hoooras sem baquear, terminando com bateria recarregada... e só sorriso. Na manhã seguinte volto à ativa novamente, moendo os aparelhos de ginástica... pela semana afora. E se me deixar fotografando, então ?! Perco a noção de horário, nem me lembro de relógio.
Mas, por favor, não me chama pra cozinha... a não ser... pra comer ! Bom, isso se o menu não constar de carne, ou fritura, ou... Deixa isso pra lá, por enquanto. Do que falávamos mesmo ? Ah, não me pede pra preparar "só uma coisinha" ou me convida pra fazê-lo "com" você, supostamente como assistente. Testes comprovam: aí vem... ainda mais trabalho ! Na verdade, a questão não é exatamente o exercício de pilotar panela ou pia, mas de não ter afinidade alguuuuma com as atividades exercidas em área doméstica, principalmente de piso e paredes frias.
Tá bem, vou me entregar logo pra adiantar a conversa: não posso com trapalheira, desorganização. Não em meus territórios, dentro das minhas quadras ! Chegamos ao âmago do problema. E esse é só o terceiro parágrafo, ai, ai, ai ! O cerne de tudo, o ponto crucial que define essa relação é que no departamento culinário nada acontece "de verdade" sem desordem, sem sujeira. Não tem jeito. Só não orquestrando ingredientes pra estampar revista de decoração com a cozinha da gente. Qualquer petisco vira uma bacia de louça, um almoço de detergente. Qualquer sobremesa passa também pelo aparador... e espalha, molha, traduz-se em algum grau de anarquia. Apesar de bastante aberta a novidades, de ser a mudança em pessoa, minha praia é da ordem... e ponto. Não tem lugar pra fuzarca em minha zona litorânea. Sem democracia. Já nasci afiliada ao PPB - partido da pouca bagunça.
Sim, porque tem gente que diz cozinhar e pinta parede, faz malabarismo, suja um mundo pra compor um sanduíche. Rege ópera com escumadeira, coreografa balé com quatro facas, três colheres, quinze pratos... para um ato. Não é capaz de compor um pas de deux. Isso sem mencionar aquele tipo italiano, que fala com as mãos e faz discurso enquanto pica fruta, descasca legume... teimando em usar a tábua diminuta pra picar um mundaréu. Resultado: tudo espalhado ! E dá-lhe lambança nas bancadas, água respingada com comida derramada, misturas temperadas, coloridas pelo chão. É arabesco em azulejo, escultura em lajota, aquarela no balcão. Mais afrescos em geladeira, pintura a óleo no fogão. Leite que derrama, fervente, abandonado. Tapete que quase anda, imundo, decorando o chão manchado.
E o tempo, precioso, como anda nessa senda ? Tal soltar ponta de novelo. Uma coisa leva à outra e... foi-se... perdido, feito água... em escorredor de macarrão !
Um calor vai me subindo. O sorriso vai sumindo. Respiro fundo. A conversa e a cantoria reduzem marcha... começando a rarear. Momento, então, imperativo, de concentração: visualizar a cor branca e, em silêncio, aprofundar em paciência, exercitar auto domínio. É, às vezes respirar só não dá conta. Melhor saída: traçar um plano de evasão. Empreender fuga... pra não explodir, qual panela de pressão.
Ah, as provas a que a existência nos submete ! Chego a pensar que possa ser carma, tamanha a calma que me demanda. Quem sabe algum resgate de existências pregressas. Vai que conste do meu caderno de testes de processo evolutivo ?! Com isso em mente, mais uma inspiração profunda e... namastê.
Indo além, consideremos: não dá pra ter todo talento ! Aptidões, dotes culinários, é certo, não os possuo. Sou plenamente capaz de desincumbir-me na atividade, mas sem arte, sem ternura, sem deleite. Deleite ? Só em produto pronto, laticínio ou não. Nesse campo de atletas das vasilhas, longe de mim bater um bolão. Se tiver que escolher entre o antes, o durante, ou o depois do fogão, na pia, marco nenhuma das alternativas. Pode me expulsar até da área técnica que eu espero, com prazer, no vestiário.
Diz se dá pra curtir o pré prato da salada ?! Só banhar uma a uma as folhas de verdura pra mim já é um stress: molha de um lado, vira do outro, esfrega a folha aqui e acolá. E vai tudo pra água com vinagre, hipoclorito. E novo enxágue, tudo outra vez. Isso se o dito cujo for à mesa cru e inteiro. Se não, ainda é preciso encarar o picar, o coser. E se o caso for couve, esperando pra passear pela frigideira, cortada bemmmm fininho ?! Melhor nem falar do que segue o bife: trempes sujas, no plural. Tooodas elas lambuzadas no final. Ninguém merece ! Mais paredes decoradas de tinta grassa, em tons pastéis, coifa dourada e aqueeele perfume que toma a casa ! Ah, ainda pode ser pior. Vai aí um peixe frito ? Nenhuma indústria de essências bate esse fixador. E de pensar eu já cansei !
Assim sendo, o ser de mente aqui presente prefere outros desafios, outro tipo de aventuras. Acha que poderia desfilar pelas passarelas da vida sem esse tipo de samba, evoluindo, inclusive, sem nota alta em tais quesitos. Mas vamos lá, nem tudo é tão negro no reino da cozinha ! Diz-se que é o coração da casa, que as famílias se reúnem ao redor do fogão. Ok. Só esclarece pra mim, por gentileza: pra que, então, sala de estar ?
Sou ótima fazedora de chá, fervo água como ninguém. O resto é crime e castigo ! Mas cada um na sua praia; certo ?!