quinta-feira, 17 de setembro de 2015
Causos
A cabeça tem uma queda por ensaios e ensaia escrevê-los. O maestro de dentro, entretanto, insiste em dirigir noutro sentido, comumente conduzindo às crônicas... quando não são poemas. Assim, um tanto dividida - ou será multiplicada ?! - sigo compondo breves capítulos de história, arremedos de novela da vida privada, com notas de comédia e uma queda por tragédia: adooooro carregar nas tintas ! Esperam que eu escreva romances mas aprecio mesmo os dramas, assim, em doses homeopáticas. Livre, desacorrentada de rótulos, uso as telas para pintar palavras, sem me prender a gênero, número e grau.
O pensamento tem decolado, percorrendo os ares da amizade. Foi e voltou por algumas queridas, avançando o terreno de suas agruras. O poema antecessor aterrissou na lembrança de uma delas, em suas grandes dificuldades de administrar a vida e seus conflitos, digamos, naturais. Tudo é difícil, tudo é um drama Homérico com vieses de Titanic: seu barco sempre afunda. Tudo, a seu ver, em seu caso particular, tem proporções maiores que do que com quem a rodeia. Todas as suas limitações, por esse motivo, para ela se justificam. Seus problemas a eximem de exercitar com os outros as delicadezas que solicita - e, por que não dizer, cobra - dos outros para si.
Ao olhar para seu dia a dia com lentes de aumento, desqualifica as virtudes alheias, diminuindo-lhes qualidades, apagando adjetivos positivos. Desejosa de alegrias de que não desfruta, desmerece o que não lhe pertence. Desconsidera os méritos de esforços de terceiros. Atribui a felicidade dos que a cercam a alguma sorte ou magia. É como se, no quintal dos vizinhos ou em território estrangeiro, tudo caísse dos céus. Desse modo, sinaliza que ninguém - com exceção dela - tem de se esforçar para coisa alguma. Ah, sua existência renderia obras épicas !
O cerne da questão talvez seja a confusão que faz entre meios e fim, entre causas e efeitos, sementes e frutos. Não aceita que tem ferramentas e que lhe cabe utilizá-las. Não age a seu favor, preferindo a ladainha das reclamações improdutivas. Como se bradar e cruzar os braços pudesse promover mudanças positivas ! É bem verdade que ajuda ajuda e que viver pode ser muito difícil sem ela... mas não dá para trilhar o caminho de ninguém em seu lugar; certo ?! Quem pretende melhorias também deve se mexer; não ?!
Não, não há magia. Bem-estar parece não ser uma questão de sorte mas de atenção. De dedicação ao processo de descoberta e exercício de ferramentas particulares, interiores. Sim, todos temos problemas. A maneira de encará-los dá o tom da condução. Como os interpretamos determina sua administração. O olhar de tragédia invariavelmente conduz à postura de vítima e enfraquece. As dificuldades também tendem a multiplicar-se à parca calma. A tensão, que assim cresce, obnubila a visão e o foco principal se perde, diluído em nuvens, neblina, tempestades de ideias.
Enquanto o descontrole a caracteriza, vem-me à mente um ser oposto. Outra amiga, bastante organizada, que passa por abalos em solo familiar e me relata ter retomado a terapia por sentir-se pisando em ovos. Ah, mas quem não os quebra aqui ou acolá ?! No intuito de incutir alguma leveza à conversa, alimentando o bom humor, menciono meus muitos omeletes desastrosos. Não há ingredientes mais simples e receita mais básica que a de um omelete e, ainda assim, é muito fácil errar nas medidas, temperar em excesso... e ter de encarar o manjar, mandá-lo abaixo com ares naturais, de maré mansa. As habilidades culinárias, aqui, passam longe, mas é inegável que boas doses de humor tornam qualquer preparação mais leve; não ?!
E a terceira personagem desta página ? Outra amiga... que se dizia profundamente apaixonada... e se vê numa enrascada. Desalentada, desandou. Continua enamorada mas, em suas próprias palavras, não rolou. O que fez ela, então ? Resolveu dispor do disponível, aceitar quem acenava... e se ajuntou. Não sabe agora o que fazer. Abraçou o que havia, permanece com produto... mas querendo devolver. Tem gente que vive e não aprende, aumenta altura mas não cresce. Não sabe que não se deve sair esfomeado, com vazio interior ? Que só se vai a supermercado depois de ter almoçado ? Do contrário é líquido e "certo": vai levar pra casa o que não serve ou que nem quer. Compra por impulso, carente ?! Nana, nina, não ! Nem em liquidação. Sofre-se, depois, a prazo, de fatura de cartão. E ainda mais, ao ver, adiante, o armário abarrotado de insensatez de mercado: o biscoito lá está. Quem vai comer ?
O que fazer nesses três casos ? Só mesmo torceeeeer ! Porque palpitar é fácil mas calçar o sapato alheio é que são elas ! Não, não dá pra dar receita de preparo em outro fogão, pra aprontar em outra panela ! Incorporar amigo, vestir sua vida ? Não, ainda não dá ! Cada um faz sua história, de fracassos e vitórias, de doçuras e amarguras, frutos de escolhas... conscientes e nem tanto. Monotonia, monocromia ? Só bem breve, temporária.
De algum modo, talvez aí se encontre boa parte do encanto: igual estímulo e as reações são tão diversas ! De um mesmo fato, um mesmo momento, é possível fazer tragédia ou comédia, dependendo da bagagem de quem vive, das lentes de quem vê. Tudo é questão de ponto de vista, interpretação particular. Um olhar diferente e... tudo pode mudar.
Há quem me pergunte de onde vem a inspiração, de onde surge o escrever ? E a resposta, bem simples, é : vi-ver com V ! Aí, unem-se fios, tecem-se teias, urdem-se tramas. E sentir compõe poema, notar enreda crônica, ponderar produz ensaio. E, se juntar, não dá romance ? Quem sabe um dia !... Quem sabe, inclusive, o protagonista venha a ser quem lê. Ou seja, você !