quinta-feira, 29 de outubro de 2015

De saudade



São poucas as coisas de que tenho saudades. Não me considero um ser nostálgico, mas muito presente. O envolvimento com o momento vigente toma quase todo o espaço da emoção. Eventualmente passeio o pensamento por passado, revivendo algumas cenas, trazendo à baila algumas recordações. Especialmente as doces. Dificilmente me transporto, me carrego com a dor de ter perdido, de não ter. Viver olhando para trás limita muito aqui e agora. E arrastar correntes definitivamente não define meu perfil.

Alguém talvez dirá que não é uma questão de escolha, que acontece, é simplesmente assim. Talvez, por alguns momentos, por algum período. Ainda que a personalidade possa ajudar a compor o cenário com um traço particular de reforço, pela lei do tempo tudo tende a passar. As perdas acontecem, sim, inevitáveis, sem controle do desejo. Algumas, inclusive, com bastannnte dor. Mas essa dor que, sob forma de luto, é vivida, tende a abrandar-se, diminuir, até dissipar-se... com a ajuda de um olhar intenso para o presente. E isto é, sim, uma escolha, um exercício consciente.

Onde ficam as saudades, então ? Como se dão ? No terreno das coisas muito marcantes, no território das importâncias da emoção. Que não são necessariamente ditadas pela frequência, mas pelo que acordam, suscitam dentro do ser. Um instante breve, fortuito mas forte, pungente, pode ficar para sempre... e despertar saudade. Acontece fruto de momentos em que o coração - tocado, mexido, alvorecido, iluminado - carimba a memória para sempre.

Geralmente esses ensejos comportam pessoas, relações de amor, de paixão. Os envolvimentos emocionais nos estimulam em muitas camadas, mobilizam muitos setores de nossos interiores. Têm, assim, autoridade de cola, fixam-se em nós profundamente. Entretanto, nem só afetos têm esse poder. Basta que algo, um fator de fora, alcance, toque nossa sensibilidade, fale com o coração, anime a alma.

São poucas as coisas de que tenho saudades. Poderia puxar pela lembrança para nomeá-las... mas um sinal inequívoco é exatamente não precisar fazê-lo. Seus agentes pululam com espontaneidade. Seus vetores avançam pela memória, passeiam pelo pensamento, tomam uma fatia de presente. Momentaneamente surgem sem pedido consciente, sem licença expressa da razão. Mantê-los alongados, alimentados, aí, sim, é outra história: de escolha, de opção.

São poucas as coisas de que tenho saudades. Uma delas é do céu que já tive a meu dispor, diariamente. Do poder enamorar-me dele às manhãs e anoiteceres, assistindo ao espetáculo em cadeira cativa. Do poder beber do divino a meu bel prazer, sem limitações. Do degustar de alvoradas e crepúsculos vividos do alto, amplamente, ao alcance simplesmente do desejo. Ter o espaço do horizonte para si, desfrutar do firmamento sem barreiras: ahhh, experiência única... renovada e sem reprises !

Como não ter sido marcada por isso ?! Como não ter-me impregnado dessa energia renovável ?! Carreguei baterias, nutri-me de sentimentos suaves e potentes regularmente. Alimentei meus dias e minhas noites desse presente... cotidianamente. Sempre surpresa, constantemente indignada, extasiada de belo. Como não haver saudades ?

Não, não sofro pela ausência. Busco nas amostras grátis disponíveis os efeitos terapêutico e mágico possíveis. Saúdo as manhãs e despeço-me dos dias reverenciando a faixa de céu que me acena. Sorvo cada bocado. Sim, às vezes com quê de saudade... mas, sobretudo, com bastante gratidão.

O que coloriu este coração não será esquecido. Quer tenha pernas, braços... ou status de estrela. Quer seja concreto, palpável ou inatingível. O que um dia foi visível por dentro, tocado pelo peito, carimba seu passaporte para minha eternidade: o porquê da saudade.