quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016
Ter que
Ter que é uma expressão que carrega consigo uma carga e tanto. Mais uma locução que muda sua acepção ao longo da vida. Acolhe nova coerência, altera sentidos, também direção, conforme sai do território da meninice para o da maturidade. Deixa, então, de ser ditada exclusivamente de fora para dentro, como um dever, passando a resultar de julgamento. Alça status de direito.
Ter que é termo, por si só, imperativo. Indica, dita, ordena. É contundente. Tem potência, causa impacto. Transita não deixando dúvida de teor. Envolve exercício, conduz ao movimento... sob forma de força, explícita ou não.
Na infância, vem do adulto, via de regra representada por uma coleção de pontos de exclamação. Não pergunta, aponta. É veiculada como imposição, evidencia hierarquia. Denota um comando, com pouco espaço ao desejo de quem ouve. Esse ter que assinala diligência, responsabilidade. É cuidar, uma incumbência. Em princípio, quer dar rumo, educação.
Na adolescência ter que assinala o começo da mudança, o início da insurgência. Verte como força de sobrevivência, acontece como urgência. É o grito do jovem. Marca transição, ponte que parece levar menino a ser homem, menina a mulher. Dá-se por impulsos internos em direção ao exterior, revelando seu autor. Começa a expor necessidades pessoais, particulares, as vontades do eu. Ter que fazer, ter que ser, ter que ir, ter que ter, ter que estar são expressões que caracterizam a fase, repleta de supostas certezas.
Ter que também perpassa o universo das aparências, mostra o peso das coisas ante os olhos do mundo. Ter que manifesta o consciente coletivo, as regras grupais, caminho à aceitação social. Evidencia o que se espera de alguém sem que isso seja claramente expresso. Ter que pode, então usar disfarces. Desfilando de forma mais velada, navega as entrelinhas, a moda, os signos e clichês. As manchetes, as propagandas, as revistas, as TVs. Troca os gritos da exclamação por reticências, mas opera com veemência, massacrando mentes não maduras. De modo um pouco diferente, ter que fazer, ter que ser, ter que ir, ter que ter, ter que estar continua a fazer vítimas ao longo da vida adulta... numa forma virtual de ditadura.
Até que o ter que vinga fruto de safra cultivada com olhares de reflexões: produto de ponderação entre o que o mundo de fora pede e o que o de dentro demanda. Ser não aceita mais toda e qualquer imposição. Computa sua experiência e outorga-se o direito de julgar pelo acervo de valores adquirido por vivência.
Esse ter que mais maduro passa a vir com menos peso, ser sinônimo - ou quase - de soberania, uma vez que é escolha, eleição. Ter que toma voz por outras bocas: fala d'alma e coração. E ter que fazer, ter que ser, ter que ir, ter que ter, ter que estar refletem necessidade de leveza e harmonia. O desejo de estar em sintonia com sua essência para melhor viver. Não mais de parecer ou aparecer, essas fachadas pesadas, fantasias sem sentido.
Em território de ser mais maduro, ter que deveria ter compromisso com a saúde da emoção, com um senso de sentir... adequação. Uma vez já educado, já polido, ser crescido - sabido de certo e errado - deveria mover-se apoiado pela própria opinião, sendo exercício de liberdade e uma lúcida opção.
Aqui, ter que que vem de fora é muito bem analisado. Passaporte é carimbado ponderado. Não tem visto de passagem sem chancela do peito. Não entra, não é aceito sem aval do coração.