terça-feira, 8 de agosto de 2017

Romance ?



Mais cedo usava, na cozinha, uma de nossas canecas. Cenas da gente emergiram à mente, tomaram o cenário de um mero momento de sede. Dei-me conta de que uso ambas, a dele e a minha, com atenção especial aos conteúdos que cada uma recebe. Ahh, aí vieram os devaneios !... Aquele tipo de conversa que temos conosco em segredo, percorrendo aparentes loucuras, cogitando razões.

Por quê ? Por que não uso apenas uma, a minha ? Porque não parece justo. Ele não está aqui... mas aqui dentro ele está. Não usá-la seria uma forma de reforçar, enfatizar sua ausência. A irremediável já não basta ? Perpetrar mais essa, morte da lembrança ?! Nesses atos pequenos, antes compartilhados, é presença ainda. Assim também é celebrado o que ficou: um abstrato tão bonito !

E pode expandir esse universo ! Há coisas em que, ao contrário, não tenho vontade de mexer, que não penso em tirar do lugar... e deixar como deixou. Uma mistura de ternura, saudade, respeito. Nem sei bem, direito. Como ocorre com quase tudo da esfera do sentir. A gente simplesmente sabe aquilo daquele jeito, num determinado momento... sem acórdão de juízo, sentença da cabeça, que não atina bem essas coisas.

E uma impele a outra e... me levo adiante, a mais uma questão: o que nos move a agir, assim, de modo tão aparentemente sem sentido, isento de raciocínio ? Ações como a de guardar um travesseiro intacto, com a fronha de antes do adeus... para abraçá-lo, sentir seu cheiro, impregnado no tecido. Ahhh, memória olfativa, poderosa ! Uma tentativa de detê-lo, não deixá-lo ir de todo. Em cheiro, um sedativo de ilusão.

E segue mais interrogação. O que achariam, terceiros, desse enlaçar travesseiro ? Que julgamentos surgiriam a partir do conhecer dessas sandices ? Entenderiam que são jogos inconscientes, de aplacar um pouco a dor ? Sub doses de analgesia que a cabeça deixa correr, gotejando lentamente. Coisa, simplesmente, de gente, ser humano saudoso, carente, com um quê de nostalgia. De ente órfão de amor, buscando equilibrar-se entre realidade e desejo, entre anseio e sonho... precisando agarrar-se a uma corda, algo que ofereça apoio. Sintomático, placebo, poção que possa...

Ou dir-se-ia que são coisas de ser verdadeiramente insano ? O que você pensaria ? E se soubesse que esses parágrafos são alheios ? Não podem ser vias, meios de viajar: uma história inventada, sem H ?! E se fosse livro, trecho, recheio da obra de alguém ?

Pois bem, responda, então: aqui, agora, o que é real, o que é criação ? Não estarei efluindo ficção ? Relato reminiscências ou manejo, a bel prazer, inspiração ? Não pode ser este um excerto de um mundo tangível a que dou asas ? Talvez um misto de tudo; por que, não ?! Haverá mesmo alguma obra que não carregue alguma dose de fantasia, certa quantia de desejo, alguma medida de ilusão ? E quem pode responder ?

Ele alimentava um anseio: além do vivido, nosso, um romance escrito, meu. Repetia que queria ser nosso catalisador. Por que não fazê-lo, agora ? Poderia partir de recordações, adentrar as lembranças, mergulhar imaginação... quem sabe compondo também o futuro que não foi.

No mistério mora muito do prazer de um escritor: ele dá asas ainda mais versáteis e vigorosas que a clareza. Escrever é oferecer exclamações e interrogações, de modo a inscrever-se, em silêncio, em quem lê. E, assim, comungar essências.

Dei vida a esses pontos ? Por palavras, acendi algo em você ? Voou comigo ?

Fizemos romance, então.