terça-feira, 3 de abril de 2018

Gulosa



Recuso-me a mover-me no automático.
Levantar, pela manhã, e entrar em atividade mecânica-mente.
Acionar um botão invisível, ativar um modo operacional, funcionar por reflexos condicionados.

Recuso-me a, não vibrante, ser um mero ambulante,
Fazedor de coisas, cumpridor de tarefas.
Sem sentir sabores, perceber perfumes, despertar cores, interagir com sons, imergir em sensações.

Recuso-me a andar sem antenas,
Desatenta dos atos e, principal-mente, desligada do peito.
Procuro ouvir direito, melhor, meus próprios meneios, as conversas do mundo.
Preciso deslindar murmúrios, desvendar e desfrutar mistérios.

Recuso-me a captar sem ecoar.
Sem por no passo um pouco das asas contidas.
Sem emanar energia, estender, transmitir o que em mim mora.

Recuso-me a atuar como quem pisa palco para aparecer.
Ou operar como massa, manada... porque o mundo demanda.
De modo inexpressivo, rotulado normal.
Caminhar sem propósito, prazer, percepção de missão:
De forma banal.

Recuso-me a fazer por fazer, estar por estar, ir por ir, ficar por ficar...
Sem porquê importante.
Careço trocar saber particular, provindo de dentro.
Alcançar sentimento que adube existir.
Superar teoria, sair do conceito.
Suplantá-los pelo encontro, pelo pulso, pela partilha.

Recuso-me a molduras só para estar enquadrada, sentir-me inserida.
Esta tela também não aceita qualquer tinta, nem qualquer traço. Tampouco qualquer pintor.
Porque é única, singular... e pintá-la é um viver precioso.
E gostoso demaaaais para ser delegado !

Recuso-me à maldade de ser máquina, e produzir sem fruir.

Não quero apenas o destino, mas o caminho todo.

Sou gulosa.